domingo, 12 de outubro de 2025

Se você tem dentes retos teu trisavô açoitou meu trisavô 200 anos atrás

Eu amo o Twitter, amo o suficiente pra nunca cogitar chamá-lo de X e gosto de ver como as discussões inúteis parecem não ter fronteiras naquela plataforma. Essa semana eu vi esse tweet e fiquei bem contemplativo sobre: 

O Tradutor cagou aí, era pra ser Hitsuji Bungaku ao invés de Hitsuji Kagaku.

Acho que o mais legal aqui é ler os retweets e comentários subsequentes e ver que "ter os dentes retos" é uma expressão no Japão para pessoas privilegiadas em geral, e nesse caso mais específico é sobre o tipo específico de artista que estudou arte na faculdade. Dá pra fazer um paralelo com a classificação que o Ian F. Martin fez no livro Quit Your Band: Notes from the Japanese Underground, onde ele classifica o underground de Tokyo em duas categorias: bandas de Setagaya e bandas da linha Chuo. Bandas de Setagaya (de Shimokitazawa na maioria) em geral são os tais artistas de dentes retos: estudantes de arte, bem conectados e de classe média alta num geral, já as bandas da linha Chuo (que podemos falar que são de Koenji na maioria) são os artistas de uma classe trabalhadora e menos "descolados", não sabendo usar as redes sociais para se promover como as bandas de Setagaya.

Até bandas que não são necessariamente de Tokyo podem ser divididas nessas categorias, porque esse som mais artístico e experimental mas com um grau perceptível de educação e naiveté é algo que permeia o cenário japonês inteiro. E, como todo discurso de Twitter, obviamente temos essa pauta no Brasil também:

Usernames censurados pra evitar dores de cabeça, não censurei o print de cima por preguiça e por duvidar que japoneses tenham o trabalho de chegar no meu blog.

 

O artista branco privilegiado é nosso artista de dentes retos no Brasil.

Quero dizer, essa dualidade sempre esteve presente: só lembrar da batalha do Britpop entre Oasis (classe operária) e Blur (classe média educada em escolas de arte), bem que nesse caso em especial tem o Pulp, que é de classe operária E educada em escolas de arte.

Eu particularmente não vou ficar sinalizando virtude aqui e dizer pra vocês que só vou ouvir música da classe operária, até porque entre classe operária e classe média alta, minha criação foi muito mais do segundo caso, mas isso tudo me fez lembrar de uma fala no Blue Period:

 

E essa é a maior crítica a artistas privilegiados: eles nunca sofreram de verdade ou passaram por dificuldades que a pessoa média já passou. Mas sinceramente, o artista precisa sofrer pra fazer algo bom? Eu acho que não.

Eu me identifico com muitas letras da Kaneko Ayano porque são experiências universais intrínsecas do ser humano urbano de hoje: seja passar por desilusões amorosas ou querer mandar tudo pro caralho, e ela faz isso de uma forma que é muito genuíno. Acho que tem muito de mono no aware nessa valorização do cotidiano que a Kaneko Ayano faz que só é possível porque ela teve uma criação privilegiada.

Quero dizer, o próprio conceito de Mono no Aware só surgiu porque os monges budistas da época eram de uma classe privilegiada e tinham tempo de pensar nessas coisas. Mas pera, acho que estou me perdendo no argumento.

Eu entendo quem não goste de uma forma de arte que claramente não tem nenhuma conexão com sua realidade, mas acho legal de um ponto de vista que aquilo também é um registro de um certo modo de vida, e o estilo de vida dos hipsters japoneses de Setagaya em particular é o que mais anseio desde minha adolescência, então sou meio suspeito de falar qualquer coisa. 

Mas no final nada é preto no branco só. A própria Kaneko Ayano vem de um background privilegiado mas não é a típica musica de uma art school kid tipo Luby Sparks ou sei lá Laura Day Romance. O que eu vejo muito de artistas formados em arte é abraçarem as tendências de som ocidental mas cantando em japonês, tipo a Ako, Lovely Summer Chan, ou o DYGL (que canta em inglês aliás). Mas você me pergunta bandas que não vieram de escolas de arte ou background privilegiados? Mass of the Fermenting Dregs, Asagaya Romantics, Stereogirl e Yuragi são bandas que não têm o som de estudantes de escola de arte, apesar de uns membros dessas bandas terem frequentado escolas de arte.

E a minha conclusão? Não sei. 

Eu sinceramente consumo todo tipo de música, com óbvio ênfase em música de artistas de Setagaya porque sou eu né, mas acho que se limitar a ouvir só música que condiz com sua realidade é tão limitante. Talvez se eu tivesse nascido em outras circunstâncias, em outro lugar e em outra época, também ficaria com raiva de cantoras com dentes retos, ou musicistas treinados desde criança em conservatórios, mas eu, Yoiti, estou bem suave pra esses e quaisquer outros artistas.

Mas enfim, eu fiz esse post porque achei curioso ligarem o fato de uma pessoa ter dentes retos com o fato dela ser privilegiada no Japão. Meus dentes são decentemente retos e nunca usei aparelho hmmmm...

Vou botar um exemplo de artista privilegiado (Kaneko Ayano que começou essa polêmica toda) e uma banda que acho que não é privilegiada no Japão:


 

 


Enfim, o assunto é polêmico e é totalmente opinião de cada um, mas onde estamos senão num blog que escrevo minha opinião sobre coisas irrelevantes faz quase 15 anos?

E é isso, acho interessante ver o twitter do lado japonês porque as discussões inúteis do lado de lá são muito parecidas com as nossas às vezes e no fim somos todos iguais.

vlw flw té mais!